quarta-feira, 23 de maio de 2007

Conto inacabado de um sonho que virou morte


Lá no teto encontra-se uma lagartixa, no canto da sala tem-se um gato deitado pensando na morte do rato que mataria sua fome, duas pontas de cigarro coroam um cinzeiro datado de 1932 vindo da Tunísia. A chuva deu uma trégua na sua teimosia de sempre. Há apenas silencio. Os gritos dos loucos foram calados. Uma torneira no banheiro pinga seus últimos suspiros como se fosse o último regurgito de um óbito que já se foi. As almas estão dormindo. As crianças sonham com o impossível, sonham com o endoderma do planeta, sonham com um gansinho dizendo Eu te amo. Os tenores estão calados. A pena dos poetas está falha. O pinho dos músicos desafinou. Apenas, e somente apenas, seu Herzog insiste com o rodar dos ponteiros.
Seu Herzog, descendente de polonês. Oitenta e nove anos passados, mas nem todos vividos. Herzog pensa muito na vida, porém pensa por conta própria. Não é nenhum leitor de filosofia greco-romana nem de Existencialismo Francês. Na verdade seu Herzog sempre disse que “é melhor conversar com o pipoqueiro da esquina do que ler qualquer livro de Heidegger ou qualquer outro desses filósofos moribundos”.Odeia escrever e quem escreve também, aliás ele afirma que quem escreve o que pensa não tem o que fazer...Diz ele que pensamento é para ser pensado e não escrito.
Esse senhor sempre o foi o tipo cara de pedra. Fechado, nunca conversava com ninguém e quando conversava...insultava. Ignorante não media palavrões para serem despejados sobre uma criança ou um louco que por acaso atravessasse seu caminho.
Sempre aos domingos Seu Herzog ia a praça Juvenildo Osteambo no centro da cidade. Era lá que ele encontrava seu único e odiável amigo Kerenski. Este senhor era um solitário também. Morava com 32 gatos que lhe serviam de psiquiatras e muitas vezes livrava-lhe do suicídio. Sim leitor, isso mesmo. Sempre que Kerenski queria se suicidar devido a alguma coisa, por exemplo uma prisão de ventre, ele matava um gato apertando sua garganta até que o oxigênio não se difundisse por as vísceras felinas.

A confabulação entre os dois senhores eram sempre as mesmas:
- Opa Herzog...
- Opa kerenki!
- Bonito pra chover né?!
- É!
- Ô Kerenski posso fazer uma pergunta?
- Claro!
- Qual o remédio que tu usas para prisão de ventre...nunca te vejo reclamando disso.
- Nada...não uso nada.Pensa que sou velho para meu organismo não funcionar direito?!
- É, acho que tô ficando idoso mesmo.
Era sempre essa conversa filosófica que velhos sempre tiram. Nunca falavam de futebol. Odiavam com veemência.
Entretanto, seu Herzog não reclamava tanto da vida. Ele sempre dizia que “as coisas estão” e “não são”, ou seja, ele estava velho e que portanto não era velho. Refutava o verbo “ser” e aclamava o “estar”. Esse senhor tinha uma sorte esplêndida pois as crianças que iam à praça com o intuíto de esmagarem algum pombo sempre se interessavam por aquela figura sádica que era seu Herzog. Digo não só as crianças, mas os loucos traseuntes daquela região também se sentiam atraído pela áurea daquele velho. Dizem que semelhante atrai semelhante, todavia Herzog abominava esses seres. Confirmava que velho só servia para dar conselhos e que conselhos que não se entende para ele é agouro forte. As crianças nem se fala. Dinheiro, choro e chatice...únicas coisas que essas criaturas sabiam fazer e pedir.
As mulheres sempre atraíram seu Herzog, contudo aquela que chamava a atenção desse velhinho não lhe queria e as que ele não gostava caiam em devaneios pela seu silêncio. Nunca tinha dado sorte com mulher. Talvez porque sempre pensou em casar. Sempre se apresentava para as damas falando em casório. Era ciumento.Tinha uma cara de marido chato infernal. Para o seu amigo Kerenski ele contava que não tinha mulher porque não queria...não queria ter trabalho...não queria dividir o salário mínimo previdenciário. Mulher é como menino: só come e dorme e isso para ele não servia. O coitado de Kerenski vivia uma mesma situação. Solitário.
Porém a vida para esses dois era essa. Um vai. Um vem. Um sim. Um grito. Uma dor. Uma morte. Era esse tédio comum vividos durante décadas. Era uma unissonância diária. Sentiam-se felizes?...sentiam-se.

...
No canto da sala a lagarixa acaba de comer mais uma mosca. O cigarro que é tragado pelo vento encontra-se perto do filtro e enquanto os loucos se desesperam, os poetas se entrelaçam nos escritos e os seresteiros entoam canções o gato realiza seu sonho estomacal.
Já seu Herzog adormece do sonho que era viver...
E Kerenski não conversa mais com ninguém.

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